quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Plágios clássicos

É dura a vida de compositor amador*. Após estar com a pulga atrás da orelha por alguns dias sobre as chances de estar pilhando a obra de alguém em uma música recém composta por mim, descobri, há uma semana, que estou. E desde então plágios musicais são um assunto que tem me perturbado intensa e constantemente.

A música que compus tem traços inegáveis de Knocking on Heaven's door, do Dylan. Demorei para notar porque a música do Dylan não faz muito o meu estilo. Tanto que sequer sabia que era dele, conhecia as versões do Guns e do Clapton, e não muito bem. A minha música é substancialmente diferente dela. Mesmo a parte similar é, estritamente falando, diferente. Mas, uma vez apontada a semelhança, ela lembra sem deixar dúvidas.

A questão que se impõe é a de quão similares entre si dois materiais musicais podem ser para que ainda se possa considerar ambos originais. E, como vou elaborar abaixo, isso pode ser bem complicado. Enquanto decido entre modificar ou descartar a parte em questão da minha música, relatarei sobre a originalidade do material musical usado pelos compositores de música séria.

Os compositores de música clássica se baseavam sistematicamente em temas alheios para compor suas obras. Como exemplo famoso, cito a 6ª sinfonia (a Pastoral) do Beethoven, cujas melodias muito boas foram tiradas, em grande parte, de canções campestres e, como exemplo obscuro mas digno de nota, cito a 2ª sinfonia do Tchaikovsky, cujos temas principais do 1º e do 4º movimentos são canções populares russas.

O caso do Tchaikovsky é particularmente interessante porque, embora essa sinfonia seja relativamente desconhecida hoje, ela foi muito importante para a consolidação da carreira dele. Isso deveu-se ao fato de que os músicos nacionalistas russos da época, dos quais ele não fazia parte e com os quais ele tinha atritos, a veneraram e o público, após a estréia, ficou eletrizado de tal forma que uma segunda apresentação se fez necessária. Mas o importante é o que o Tchaikovsky teve a dizer sobre o sucesso, particularmente, do último movimento. Ele escreveu que o crédito "deveria ter ido ao seu verdadeiro compositor", no caso, quem compos a canção popular cuja melodia ele transformou em tema para o movimento final.

Por outro lado, é claro que o compositor da canção popular não compos a sinfonia e que o movimento baseado na canção popular e a própria são obras musicais completamente diferentes. Para não deixar dúvidas, é óbvio que não há um paralelo direto entre esse e o meu caso. Mas ele mostra como a prática intencional de buscar inspiração em melodias alheias para obras próprias foi comum e declarada pelos grandes compositores. Por sinal, tão comum e aceita que há musicólogos vivendo de estudar as origens dos temas usados.

Parece estar claro que, nessa linha de pensamento, a originalidade melódica não é considerada como fator necessário para a originalidade e para o valor de uma obra. Contudo, estive falando de compositores importantes e renomados tomarem sistematicamente melodias de canções de compositores obscuros e desconhecidos. Mas o que aconteceria se um compositor renomado e importante se inspirasse em obra de outro de um nível tão ou mais alto?

Por acaso, conheço um exemplo em potencial do gênero: o 2º movimento da nona sinfonia do Beethoven e o 3º movimento da nona do Dvoràk, as trilhas sonoras recomendadas para a postagem.

A nona sinfonia do Dvoràk é, disparado, sua obra mais popular e aclamada. Ela foi composta em 1893, durante a estadia do compositor tcheco em Nova York, onde trabalhou como diretor da orquestra sinfônica local de 1892 a 1895. Por isso, é conhecida como a sinfonia "do novo mundo". Na minha opinião, uma sinfonia incrível, eu poderia elogiá-la por parágrafos. Quanto à nona do Beethoven, o único comentário necessário é que ela foi apresentada pela primeira vez em 1824, ou seja, 69 anos antes.

O ponto é que os scherzi delas são parecidos o bastante para deixar a nítida impressão de plágio. O Dvoràk certamente conhecia a sinfonia do Beethoven e tinha acesso à partitura da mesma. Em algum ponto do seu Scherzo, o Dvoràk toma outros rumos que os do Beethoven e, pessoalmente, prefiro o do Dvoràk. O curioso a respeito disso é que ambas as sinfonias são veneradas pela crítica - ninguém malha o Dvoràk pela semelhança entre o terceiro movimento dele e o segundo do Beethoven.

Por sinal, quem for ao artigo da wikipedia sobre a sinfonia do novo mundo sequer encontrará menção à nona do Beethoven, na versão em inglês. No correspondente em português do artigo, a similaridade é mencionada da mesma forma que o é no encarte do CD dedicado ao Dvoràk de uma coleção de música clássica que a Zero Hora vendeu aos seus assinantes há uns dois anos (ainda bem que tenho amigos assinantes \o/ ). Os encartes, que contém mini biografias dos compositores e comentários sobre as obras presentes em cada CD, são escritos pelo compositor contemporâneo português Eduardo Rincón. E a conclusão dele é que o Scherzo do Dvoràk uma obra prima, assim como a sinfonia como um todo. Sim, sem polemizar sobre as chances de plágio, ainda que comece mencionando que a semelhança é tão grande "que chega a parecer plágio". Assim, a postura usual é omitir ou fugir da discussão.

Depois de toda essa conversa, o que parece estar estabelecido é que não há critérios objetivos para determinar o quanto não-originalidades presentes em uma obra colocam em questão a autoria da mesma. Pois se existissem, não haveria razão para omitir a semelhança entre os scherzi. Bastaria dizer que são parecidos, mas não se trata de plágio por qualquer critério que existisse e eliminasse a possibilidade.

Chego, então, ao fim, sem decidir o que faço com a minha música. Conforme os ânimos futuros, publico mais divagações sobre o tema (sequer discuti casos atuais, por exemplo).

* Única ironia explicitamente apontada em todo o blog. Não tem graça ser irônico se é necessário se explicar, logo isso não acontecerá novamente. Mas é bom deixar claro que frases irônicas estarão soltas por aí. :)

P.S.: já que plágio é o assunto, o "Buenas, oscioso leitor!" da primeira postagem foi baseado no prólogo de uma edição brasileira da década de setenta do Dom Quixote. Nessa tradução, o Cervantes saúda o leitor adjetivando o mesmo de oscioso. Me ofendi e não li o livro.

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